Sou um velho, um velho bobo que sonhava com a liberdade, passei a vida com este sonho, nasci escravo, quando criança não tinha muita noção do fato, tive sorte minha mãe era a cozinheira da casa grande, e eu até os oito anos fiquei preso a sua saia, não tinha muito contato com minha gente, dormia junto com minha mãe num quarto destinado aos escravos que serviam dentro da casa.
Minhas horas de folguedo eram muitas, porque a sinhá tinha uma filha que tinha a minha idade, e como sinhá era boa permitia que brincássemos juntos pelos arredores da casa grande, mas tudo que é bom termina.
Um dia, ninguém entendeu o porquê, mas o patrão mandara chamar minha mãe e sem explicações, disse-lhe que me venderia, nada adiantou os rogos de sinhá, em poucos dias fui levado, para fazenda na mesma região.
Mais tarde soube que a decisão foi tomada porque o patrão envenenado pelo capataz, tinha medo que a minha amizade com a sinhazinha lhe trouxesse problemas futuros.
Na nova vida a moleza acabou como também minha infância, era bem desenvolvido devido ao fato de não ter vivido em senzala até então, como todo escravo da casa comia o que mamãe servia aos patrões, isto me dava grande vantagem na aparência em relação aos meninos criados desde o nascimento nas senzalas, imediatamente fui colocado para ajudar na colheita com a mesma carga horária desumana dos outros escravos.
A revolta ia se formando dentro do peito, fui tomando consciência da vida desumana de meus irmãos, tentei fugir bem umas três vezes, toda vez fui para o tronco, depois pão e água por dias, assisti a morte no tronco de alguns irmãos, partiam e deixavam para trás grande dor no peito de filhos e mulher, pois nem todos eram separados da família, diziam não ser rendoso para o trabalho separá-los.
Bem fui crescendo, os anos passando, e quando contava já com uns vinte anos, chegou à fazenda uma leva de escravos novos, entre eles estava um que se tornaria meu grande amigo, era Tião que há alguns anos havia vindo diretamente da África, lá era rei, aqui escravo, passara por uma fazenda onde ficara uns cinco anos e agora havia sido vendido devido a problemas financeiros do patrão que se desfizera de metade de seus escravos.
Aproximou-se de mim exatamente por causa de minha revolta, eu tinha tentado minha terceira fuga e havia saído do tronco naquele dia, todo arrebentado, sangrando, ele entrou na senzala sentou-se do meu lado e com umas ervas que colhera começou a fazer unguentos, aliviava a minha dor muito mais que as ervas que as mulheres preparavam, ao sabê-lo rei espantei-me, como um rei, se dispõe a tratar as feridas de um neguinho como eu, ainda mais sendo este um trabalho praticado pelas mulheres.
Tião estava sempre sorrindo, não só para nós, mas para todos tinha sempre uma atitude humilde e sua presença sempre impunha respeito, nem o capataz o importunava, eu me perguntava será que é pelo seu tamanho?
Certa vez, sendo sabedor que o filho do patrão adoecera, não pestanejou, na primeira oportunidade cercou-se dele e lhe ofereceu ajuda, ainda dizendo que se o sinhô não confiasse nele não tinha problema ele ensinava o que fazer e outra pessoa de sua confiança o faria.
Passado alguns dias o chamaram na casa grande, ele já foi levando as ervas, e para espanto geral o menino em três dias estava outro, desta forma ganhou a confiança dos brancos e não era raro ver o patrão trocando dedo de prosa com ele.
Depois de algum tempo nossa senzala foi melhorada, introduziram na nossa alimentação um pouco de carne e passaram a permitir que fizéssemos nossa roça para o plantio de alguns legumes e de mandioca.
É aquele nego parecia ter nos ajudado, mas eu ainda queria fugir.
Estava exatamente planejando uma forma de fazê-lo quando ele se aproximou, e sem rodeios foi falando, está na sua cara que você vai fugir de novo. Eu rebelde como sempre, atirei-lhe na cara a sua covardia, onde já se viu rei que se transforma em escravo e ainda por cima amigo de branco.
Balançando a cabeça, disse-me que exatamente um rei tem que saber o que é melhor para o seu povo, e o seu povo ali era escravo, que culpa da situação tinha os de sua própria cor na África que os havia traído, entregando-os por um punhado de ouro na mão dos brancos.
Estes brancos carregavam o erro de tê-los comprado, mas se não fosse eles seriam outros brancos que o fariam, agora vejamos lá na África antes de ser rei fui instruído pelos mais velhos da tribo e também pelo pajé.
Nestes ensinamentos eu aprendi a amar e cultuar os Orixás Naturais, aprendi que nada nesta vida acontece sem a permissão de Olorum, e que para tudo existe um motivo, nada nesta vida é perdido, e tudo é feito para a nossa alma crescer.
Louco, insano é aquele que se deixa levar somente pela emoção, deve-se pensar com a razão, deve-se estudar os fatos seguindo sempre as leis dos Orixás, que é a lei de Olorum, e se Olorum nos coloca em determinado plantio é neste plantio que devemos trabalhar.
O que você ganhou até hoje com sua revolta, além do sofrimento do tronco e a perseguição do capataz, o que você trouxe de bom para o seu povo sofrido, além de espalhar a sua revolta e mais tarde a vingança do capataz em cima da nossa gente por sua causa? Nada, nada mesmo, acredito até que ao invés de crescer a sua alma diminuiu.
Dos meus olhos rolavam grossas lágrimas, do jeito que ele falava, parecia que eu tinha jogado fora minha vida até então, já ouvira coisas semelhantes dos velhos, mas eles pobres coitados não tinham como lutar, agora Tião ainda era forte apesar de já contar com uns cinquenta anos, tinha nascido livre ao contrário de mim, e ainda por cima rei.
Ele com aquele jeito seu peculiar, abraçou-me, balançando a cabeça disse-me que viveria mais um bocado, mas eu mais novo que ele uns trinta anos, ficaria e precisaria seguir seus ensinamentos, suas mandingas e seu tratamento com as ervas, senão o seu povo ficaria desorientado de novo.
Não acreditei, ele me apontava como seu sucessor, eu um nego metido e revoltado, e mais uma vez ele me disse a revolta o tornou surdo para os bons sentimentos, sentimentos que trazes dentro de tua alma plantados por sua mãezinha, e és metido por causa de teu orgulho, que foi ferido quando deixastes de ser cria da casa do patrão e passou a ser apenas mais um numa senzala.
Como ele estava certo, lia dentro de mim melhor do que eu mesmo, e na verdade eu só tinha parado para ouvi-lo porque ali se encontrava alguém que tinha tido posição melhor que a minha, ele tinha sido um rei.
Bem muitos anos se passaram, um dia meu amigo já muito velho partiu, quando sentiu que a hora estava chegando pediu ao sinhô que o deixasse construir um barraco, de madeira, perto do lindo lago que ladeava a fazenda, foi atendido, e um dia quando fui levar seus mantimentos, chamou-me e disse : Agora é só com você, se puder prepara alguém para quando chegar a tua hora.
Quis ficar ali, passar a noite, ele sorrindo dizia, é só velhice, é só velhice, a carne está cansada, a alma novinha em folha precisa de libertação, vá em paz, não se esqueça do que comigo aprendeu, continue colocando em prática, que quando chegar o dia da tua liberdade prometo que venho para libertar tua alma.
Abracei-o, beijei aquele rosto tão querido, que havia me ensinado a humildade, a ter paz, e com isso tornar a vida de meu povo menos sofrida, no dia seguinte quando voltei ele havia partido, seu corpo inerte, seu rosto com um lindo sorriso, levei a notícia ao sinhô que para o meu espanto deixou as lágrimas rolarem.
Depois daquele dia, sinhô passou a me procurar como dizia para um dedo de prosa, ia logo falando Tião se foi, mas deixou você para nosso consolo, em seu leito de morte anos após, chamou-me e apontando para o seu filho, que Tião havia salvado quando jovem, disse-lhe quando o coração apertar lembre-se deste preto velho, foi através de sábios conselhos que parei de praticar muitas injustiças e aliviei meu coração sempre.
Mais uns anos, sinhozinho permitiu que eu ocupasse a cabana de Tião, bem sucessor não foi difícil, rere! Minha querida nêga desencarnada em seu último parto, me dera onze filhos, cinco meninos e seis meninas, desde pequenos os ensinei, uns dois anos antes a Lei Áurea havia sido promulgada, e apenas dois continuaram na fazenda.
A minha alma se libertou de dia, ainda era cedo, um sono danado me deu, de repente lá estava Tião, havia prometido e cumpriu, muito rápido eu estava na Aruanda, e então descobri o que era liberdade, descobri que todo encarnado é escravo da carne, e pior que isso é escravo dos vícios que carrega na alma, estes sim são verdadeiras feridas abertas emanando muita energia negativa, que só através da reforma interior que através de Tião eu consegui realizar, é que conseguimos nos libertar realmente e então passarmos a nos sentir livres, o amor nos invade e a felicidade transborda.
Ah! Ocê sabe o nome deste véio teimoso, salvo por Pai Tião, ora, ora, fia sou eu Pai Tomé.
Ditado por Pai Tomé de Aruanda
Psicografado por Luconi
em 30-07-09
Maravilhoso, pois tive o prazer de ouvir varias histórias e ensinamentos do pai Tião que desencarnou e infelizmente para nós não tivemos mais o prazer de escutar suas lindas histórias de vida e que tanto nos faziam refletir; agora estamos tendo a honra de receber pai Tomé e fiquei perplexa de ver essa história tão linda que me emocionou.
ResponderExcluirSaudações fraternas... Do trecho do meio ao final, fui tomado de choro convulso e tive dificuldade em terminar a leitura... Recomposto digo-lhe: Obrigado!
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