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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

MARIA MALANDRA

IMAGEM: ORIXÁS E ENTIDADES



Maria Nazaré é o meu nome, singelo e atrevido.. Atrevido por que é o nome que também chamam a mãe de Jesus e quem sou eu para carregar esse nome? Não sou ninguém, uma rampeira da estrada, sem história, sem caminho, apenas uma mulher que um dia foi menina, menina que se achava sem sorte, abandonada, não pela mãe que cedo partiu nas brumas da morte, pelo pai talvez, mas pobre homem que carregava o mundo nas costas, que de tudo se culpava, pela pobreza, pela falta de sorte, pelo desemprego, ele se achava um nada. Não sabia que pra mim era um tudo, era proteção, era a mão que consolava, era a paciência que me ouvia chorar de saudades da mãezinha. Ele tanto me amava, tanto que não aguentava me ver passar a pão seco algumas vezes, queria me dar o mundo e triste ficava quando alguma vizinha trazia roupas usadas de suas patroas para mim. Eu não ligava, era conformada e fazia festa quando as roupas chegavam. 

Um dia o pai sumiu, saiu e não voltou, alguns poucos o procuraram e até no posto policial, mas ninguém sabia, ninguém tinha visto. Pai não bebia, não tinha dinheiro, quando algum vizinho se achegava para um dedo de prosa, trazia a bebida, o pai gostava, mas isso não era sempre. Fiquei eu lá no barraco, tinha quase quatorze anos, mas alguns homens lá chegaram, eram do posto policial, um deles queria me levar não sei pra onde, diz que lá não podia ficar, que era perigoso. 
A vizinha se intrometeu, pode deixar ela fica comigo, eu cuido dela, arrumo trabalho seu polícia. É, mas seu policia não gostou, disse ter juizado pra me levar, a vizinha disse: 

- Seu policia ela já tem idade pra trabalhar, aqui ela é como nós pobre, mas conhece todo mundo, ninguém lhe fará mal, a lei nossa aqui é coisa séria. 

Seu polícia coçou cabeça e se foi não antes de dizer que voltaria para ver, ver o que eu não sabia. O barraco da vizinha era dois cômodos, três filhos rapazes já e o marido, ela não achou bom eu ficar lá, ia me cuidar, mas eu ficaria no meu barraco. 
No dia seguinte, disse que ia me arranjar emprego, eu esperei, queria ganhar meu dinheiro, mas de noite o policia chegou, eu estava dormindo e ele me acordou. Eu me assustei, ele me bateu, uma, duas, três vezes, aí me disse: 

- Teu emprego é comigo! Já combinei com a vizinha. Eu pago para você dar o dinheiro para ela. Se não for assim te levo pro juizado e lá vai ter não só eu, e a vizinha eu dou um jeito de prender os rapazes dela, um ou dois. 

Dizendo isso, arrancou minha roupa e se refestelou. Foi embora e eu estava muito machucada, ele me olhou e disse: 

- Duas noites pra você se refazer, duas noites é o suficiente, na terceira volto, você se acostuma, branquinha pobre do morro é igual as neguinhas, veio marcada pra ser puta. 

Eu me apavorei, ele saiu e a vizinha entrou, me olhou e se pôs a chorar e chorou muito pedindo desculpas, ela não tinha culpa, ele ia dar um jeito de qualquer jeito. 

Falei para ela que eu não ia viver aquilo, que eu ia dar jeito, meu nome era Maria Nazaré e puta eu não ia ser. 

Assim aconteceu mais duas semanas, ele veio quase todas as noites e me ensinava de tudo, disse estar me preparando para a vida de puta. Eu o odiava e esse ódio foi crescendo, então fiquei menstruada e a vizinha disse que agora era perigoso que eu podia engravidar.

Fiquei apavorada, não ia pôr filho no mundo, não ia ter filho sendo puta, nem ia matar num aborto. Até odiei ser branca, porque ele dizia “ minha puta branca” você vai ser puta de negão. Ele não era negão, ele era branco também, até que na quarta semana ele chegou com um homem negro, muito negro, apontou pra mim e disse: 
 - Esta é a minha puta branca, quero assistir, faça sem dó, é uma puta. 
O negão me olhou e disse a ele: 

- Seu policia é uma menina! 

 -Você que sabe negão, hoje é ou ela aqui ou você na cela com meus amigos. 
Mas o negão não fez, apenas se aproximou, fez que ia tirar minha roupa, mas, rapidamente, tirou um canivete da bota. Se voltou para o policia e disse : 
- Nem eu, nem ela, hoje é você, você vai pro diabo, ele te quer. 
Quando vi o policia estava com o pescoço cortado. 

O negão me mandou limpar tudo e ele saiu com o corpo, não sei o que fez, não o vi mais. 

Sei que por causa do sumiço do policia, muitos fardados começaram a rondar por ali, ninguém tinha mais sossego, prendiam para interrogar, surravam e soltavam. Eram homens, eram rapazes e até uma mulher prenderam. Mas a mim deixavam em paz. 

Até o dia que um foi no meu barraco à noite, chegou, entrou e me disse que sabia que eu era a puta do policia. Esse era homem que gostava de causar dor, machucava com beliscões, às vezes bituca de cigarro, eu aguentei duas noites, na terceira ele não me encontrou mais. 
Fugi, a vizinha me ajudou, deu dinheiro, fui pra longe e saí andando por uma estrada, até que uma senhora me ajudou quando era noite, levou-me para sua casa e me deu trabalho. Fiquei ali, ela morava sozinha, na beira daquela estrada, eu nada recebia, mas não mais passei fome. Em dois anos, ela morreu, antes de morrer me disse onde estava seu dinheiro que era para eu usar, não tive dúvidas, mês e meio após sua morte abri o cabaré. Era outra, tornei-me formosa, não, eu não me prostituía, eu me divertia muito, era feliz, levava a todos na minha lábia que nem eu sabia que tinha esse dom. Evitei mortes, separei brigas, tornei-me uma jovem conselheira e continuei pobre, porque o que ganhava distribuía para os barracos próximos daquele velho casarão que era o cabaré. 

Recusei-me a ter um marido, não era de ninguém, o meu coração pertencia àquele negão que um dia apareceu no cabaré, eu o reconheci e ele a mim. Tornou-se um companheiro, tínhamos nossos momentos, eu o amava e ele me amava, mas vivemos como namorados, jamais marido e mulher, estava para nascer quem mandaria em Maria de Nazaré. 

Negão me ensinou a arte, porque é uma arte para mim, do culto da Jurema, no culto sim era meu mestre. Na minha vida, muitas meninas passaram, eu as adotava e não permitia que se deitassem com homens, não era um puteiro, era um cabaré, claro que tinha mulheres que ganhavam a vida, mas ali apenas se divertiam e arranjavam clientes que levavam para onde quisessem para ganhar seu dinheiro. As meninas se tornavam mulheres de fibra e só então se quisessem frequentavam o cabaré com respeito para diversão, até que tomavam rumo na vida. Até os fardados me respeitavam. 
Parti antes do meu negão, não deu tempo de usar minha lábia, aquele policia que gostava de causar dor em mulher apareceu, tentou me coagir, eu com altivez me impus, ele preparou tocaia durante o dia, quando não tinha ninguém, estava velho, mas mandou me segurar quando cuidava de meu jardim e foi enfiando a faca em lugares que não me mataria de imediato, foi aos poucos, umas seis vezes, na quarta meus sentidos já fugiam, a sexta deu a facada em uma mulher quase morta. 
Só então o negão chegou, tarde demais para me salvar, mas a tempo de matar o policia e seu comparsa. 

Ainda em seus braços abri os olhos, sorri e pedi para cuidar das meninas e do cabaré, ele chorava, acariciei seu rosto dizendo que o amava e parti, estava com quarenta anos. Meu negão matou duas vezes na vida, as duas por mim. 

Fui recebida por um tal Zé, no início da década de 50, após quinze anos voltei a Terra para me integrar nos trabalhos dos Malandros, mas demorou alguns anos  para Malandra chegar a poder incorporar, as médiuns resistiam, aos poucos conseguimos, enquanto isso trabalhávamos na espiritualidade. 


Sou Maria de Nazaré, sou a Maria Malandra, conto minha história com orgulho, para perceberem que Malandro é aquele que age com as palavras, essa é a sua maior arma, é malandro no bom sentido, é gente boa e Malandra é da mesma forma, age igual a Malandro.

Só que vivemos numa época que por sermos independentes e não precisarmos de homens para nos sustentar, por nos impormos e sabermos fazer que nos respeitassem, éramos marginalizadas e pouco nos importávamos, pois essa gente preconceituosa para nós nada era, apenas pobres coitados que se mantinham acorrentados a uma sociedade machista e patriarcal, homens e mulheres que usavam cabrestos. 

Nós Malandros e Malandras fomos e somos livres, hoje aprendemos a respeitar a Lei Divina e é só ela que nos comanda. 


No fim da madrugada ela dormia, ao meio dia acordava, a tarde era sua manhã, a noite era sua tarde onde realmente despertava e no seu cabaré reinava. 


Maria Malandra às suas ordens! 


ditado por Maria Malandra 

psicografado por Luconi

31-05- 2020